Posição en dehors
22 de dezembro de 2020Transtornos alimentares no ballet
22 de dezembro de 2020O bailarino é reconhecido por sua “plasticidade” e sua capacidade de colocar os membros em posições inimagináveis para outros mortais. Desde cedo o bailarino está treinando para ganhar um pouco mais de mobilidade em suas articulações e, de fato, muitos dos que acabam por largar a dança precocemente, mesmo que inconscientemente, o fazem por não possuírem a mobilidade que a atividade exige.
Sem uma boa mobilidade no tornozelo e pé, a bailarina não será capaz de subir na ponta; sem uma boa mobilidade no quadril, o en dehors fica prejudicado. Como não conseguem evoluir tecnicamente no mesmo nível que suas colegas mais flexíveis, sentem-se menos atraídos pelo ballet e, por fim, acabam por procurar outras atividades.
Por outro lado, o excesso de mobilidade, junto com uma grande resistência me realizar exercícios de fortalecimento, está envolvido no desenvolvimento de grande parte das dores e lesões frequentemente vistos em bailarinos.
O que torna uma pessoa mais flexível?
A flexibilidade é muitas vezes vista como resultado de um maior ou menor alongamento da musculatura. Mas, de fato, diversos outros fatores contribuem para ela, incluindo a anatomia óssea, os ligamentos, a cápsula articular e as fáscias.
Anatomia óssea
A anatomia óssea é especialmente importante no quadril, uma articulação que, na população em geral, tem uma função mais de prover estabilidade do que de gerar movimento. A contenção óssea no quadril, desta forma, é muito maior do que a contenção que existe no ombro, uma articulação anatomicamente preparada para prover mais movimento às custas de uma menor estabilidade.
A imagem (A) demonstra um quadril normal, com a linha amarela indicando a grande cobertura óssea, o que provê maior estabilidade às custas de menor mobilidade. A imagem (B) demonstra um ombro normal, com a linha amarela indicando uma menor cobertura óssea, o que provê maior mobilidade às custas de menor estabilidade.
A anatomia óssea não se altera com o treinamento, de forma que uma pessoa anatomicamente menos favorecida sempre terá suas limitações em termos de flexibilidade. Poucos são aqueles que, de fato, serão capazes de obter a tão sonhada posição de 180 graus de em dehors entre os quadris.
Ligamentos e cápsulas articulares
Os ligamentos e as cápsulas articulares são estruturas que conectam um osso ao outro e que provêm estabilidade para as articulações. São estruturas sem capacidade contrátil e que tendem a se retrair em pessoas que ficam muito tempo em uma mesma posição, como aquelas que trabalham o dia todo sentadas, ou a se alongar, por meio de exercícios específicos.
Algumas pessoas possuem naturalmente os ligamentos mais frouxos do que o habitual e tendem a ter maior flexibilidade. São considerados “talentos natos” para a dança. O treinamento ajuda a melhorar esta flexibilidade, mas há um limite para isso.
Músculos
O alongamento muscular foi por muito tempo considerado o responsável pela maior ou menor flexibilidade das articulações. Sem negar a importância do alongamento, hoje sabemos que a capacidade de relaxamento muscular é tão importante quanto o comprimento da musculatura propriamente dito.
Muitas vezes, a bailarina é capaz de obter um bom nível de relaxamento durante exercícios de alongamento passivo, que utilizam apenas o peso do corpo (exercícios na barra, por exemplo), e desta forma aproveitar o máximo do comprimento que a musculatura pode ter. Durante a rotina de exercícios, porém, não conseguem um bom relaxamento muscular e não conseguem reproduzir a boa mobilidade que possuem na barra. Isso pode ser melhorado por meio dos exercícios específicos de alongamento ativo da musculatura.
A imagem acima mostra o movimento do braço de uma pessoa levando o copo para a boca. A força de contração do bíceps, neste caso, está sendo maior do que a do tríceps, de forma que o bíceps está se encurtando enquanto o tríceps está se alongando. Quanto mais relaxado estiver o tríceps neste momento, menor será a resistência para o movimento. O mesmo acontece nas mais diversas articulações durante os movimentos da dança, podendo levarar a alguma limitação na mobilidade.
Diferentes tipos de flexibilidade
A flexibilidade pode ser estática ou dinâmica e pode ser ativa ou passiva.
- Estática: São aquelas em que a articulação é mantida durante determinado tempo em uma posição alongada. Podemos dizer que a flexibilidade estática é o resultado do alongamento estático.
- Dinâmica ou funcional: refere-se à capacidade de usar uma amplitude de movimento articular ao desempenhar uma atividade em velocidade normal ou acelerada.
- Ativa: Flexibilidade ativa é a maior amplitude de movimento alcançada usando apenas a contração dos músculos ao redor da articulação. O desenvolvimento deste tipo de flexibilidade é mais difícil, uma vez que requer a flexibilidade passiva para assumir a posição inicial e da contração dos músculos agonistas para mantê-la.
A flexibilidade ativa tem maior correlação com o desempenho desportivo, especialmente em atividades como a ginástica rítmica, ginástica olímpica, ballet e artes marciais, entre outras.
- Passiva: flexibilidade passiva é a maior amplitude de movimento que se pode assumir utilizando forças externas, por exemplo: peso do corpo, a ajuda de um parceiro, o uso de aparelhos, entre outros. A flexibilidade passiva é sempre maior que a flexibilidade ativa.
Exercícios de alongamento
Cada um dos tipos de alongamento descritos acima pode ser treinado de forma específica e devem ser considerados em momentos específicos ao longo da rotina do bailarino.
A flexibilidade passiva é o que vem à mente da maioria das pessoas quando se fala em flexibilidade. Estudos recentes, porém, demonstraram que o alongamento passivo tem menor relação com a mobilidade apresentada durante a rotina de exercícios e está associado à perda de força, de desempenho e a maior risco de lesão quando realizado logo antes do ensaio ou apresentação.
A obtenção de uma maior flexibilidade passiva é importante para que se consiga uma maior flexibilidade ativa, mas estes exercícios devem ser feitos após a rotina ou em um momento específico, fora das aulas regulares do ballet. Um ponto importante a se considerar é que estes exercícios não devem ser feitos além do limite da dor, uma vez que a dor tende a provocar o espasmo da musculatura e, assim, podem até piorar a flexibilidade.
Exercícios de flexibilidade ativa estão mais correlacionados com o desempenho durante a rotina da dança e são os mais indicados para serem feitos no início dos ensaios ou antes das apresentações.
A imagem (A) mostra uma bailarina realizando um exercício de alongamento passivo. Estes exercícios não devem ser parte de uma rotina inicial da aula ou da rotina pré apresentação. A imagem (B) mostra a flexibilidade ativa da bailarina, obtido por meio da contração muscular. Nem sempre a flexibilidade passiva obtida com exercícios como o da imagem (A) se traduzem em uma melhora flexibilidade ativa.
Relação entre flexibilidade e lesões
O excesso de flexibilidade pode proteger o bailarino de certos tipos de lesões e torná-lo mais vulnerável para outros tipos.
O principal problema do excesso de flexibilidade é o risco de desenvolver instabilidade articular. Até mesmo articulações com significativa contenção óssea, como o quadril, pode sofrer com instabilidade nos bailarinos. A instabilidade pode sobrecarregar os tendões e desencadear tendinites, especialmente ao redor do tornozelo.
A estabilidade das articulações depende de estruturas estáticas (que não produzem movimento), incluindo ligamentos, cápsula articular e fáscias, e também de estruturas dinâmicas, mais especificamente da musculatura. A estabilidade estática muitas vezes fica comprometida no bailarino, devido ao excesso de exercícios de alongamento. Para compensar isso, é importante que o bailarino treine sua musculatura para otimizar a função estabilizadora da musculatura, evitando-se assim a sobrecarga, dores e lesões.
O excesso de movimento em extensão do tornozelo (posição de ponta) pode também levar ao desenvolvimento do impacto posterior do tornozelo, um problema pouco visto em atletas envolvidos com outras atividades que não o ballet.
A mobilidade excessiva da coluna em extensão torna o bailarino vulnerável a um tipo específico de fratura por estresse, denominado de espondilolise.
Infelizmente, ainda há muita resistência para a realização de exercícios de fortalecimento entre bailarinos, seja por medo de que isso levará a uma perda de mobilidade, seja por medo de desenvolver uma aparência mais musculosa. Exercícios de força são essenciais para o desempenho e para a prevenção de dores e lesões no bailarino e, desde que feitos da forma correta, não produzirão hipertrofia muscular nem levarão à perda de mobilidade.